Andei pela cidade

Tainá Farrielo
2 min readJun 9, 2021

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Andei pela cidade observando a atmosfera que me sondava.
Os bêbados de Elis Regina caminhavam sem destino pelas ruas ácidas e esnobes.
Quem sentia fome, cutucava as latas de lixo como se cutuca um morto na esperança de encontrar vestígios de vida.
De repente aquilo foi se multiplicando. E ao meu redor a atmosfera era desigual. Homens engravatados caminhavam apressados em direção ao metrô. Bem vestidos, de olhar indiferente e frio. Passavam por uma calçada cheia de meninos de chinelos remendados brincando e gritando em meio ao caos que desmorona diante dos nossos olhos.
E brincavam
O furacão das violências cotidianas continuava
E brincavam
A fome lhes estapeava a cara
“Moça, me ajuda com um real aí”
“Tenho não, menino.”
E a moça acelerava o passo, com medo do assalto.
Brincavam, mas com lamúrias nos olhos. Com ódio no peito. Com sentimento de indignação mal resolvido dentro de si. Não dava pra fugir, então brincavam, mas não dá pra saber se remediavam.
A raiva adultiza o olhar dos meninos que já tão novos sentem o amargor da vida asfixiar o peito.
Andei pela cidade observando a atmosfera que me sondava.
Numa esquina da floricultura, uma moça em situação de rua recebia um cafezinho de uma idosa que provavelmente morava pela região. Tomava o café como se fosse o elixir das deusas.
E dava um pequeno gole, sem ser muito grande, para apreciar por mais tempo o seu café.
Estava frio, e ela encurvava seu corpo, encolhida entre os trapos, tomando o seu café quentinho, concentrando toda a sua vida em cada gole do líquido preto que a anestesiava.
Descendo mais um pouco, um homem tentava resgatar a simbologia de um lar, juntando caixas, cobertas no chão frio e um vaso de plantas colocado delicadamente em cima de uma das caixas, representando a humanidade latente que resiste à mil processos de desumanização. Era a casa número 0, que incomodava olhares burgueses de Higienópolis. O homem cuidava de sua plantinha no vaso com muito afeto.
Andei pela cidade observando a atmosfera que me sondava.
E dependendo de onde eu olhava, via vazio. Vazio nos olhares apressados que passavam, na indiferença tão gritante, que é escandalosa demais na cidade de São Paulo.
As pessoas mascaradas caminham apressadas, com olhar distante, sério e severo se surgem pedintes indo em sua direção.
A atmosfera é de ruínas, mas ainda estamos aqui. Me sinto andando entre as ruínas, observando resquícios de vida que constantemente são mutiladas ou vasinhos de planta, ou uma moça apreciando delicadamente o seu café enquanto se encolhe de frio, ou crianças brincando no meio das ruínas de suas dores, fazendo malabarismos com suas angústias.
Caminhando sem destino nas ruas ácidas e esnobes.

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Tainá Farrielo

Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal - Machado de Assis