Memórias sobre a origem de quem sou — minha mãe

Tainá Farrielo
6 min readNov 18, 2020

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Na infância, o nosso ambiente de convivência é o primeiro a nos dar referência sobre visões de mundo, o primeiro onde passamos a fazer descobertas, a desenvolver e aguçar curiosidades. E hoje refleti no quanto a minha mãe foi responsável por eu ter me tornado quem me tornei: uma pessoa curiosa, com vontade de viver de pesquisa, que sonhava em fazer universidade. Mas vamos por partes.

Ainda menina, eu já amava as ciências humanas, sem nem mesmo saber o que era aquilo. É muito doido pensar nisso hoje, aos 30 anos de idade. Eu era muito questionadora e curiosa, lembro que no ensino fundamental eu cheguei a ter uma matéria chamada “Ciências Sociais” na escola, lembro do livro didático e o nome da matéria escrito bem grande, e eu amava ficar folheando aquele pedaço do livro, além de ter sido a minha matéria favorita, só que retiraram da grade depois (é, aquela velha mania…); além disso, tinha um desejo louco de estudar a sociedade, de fazer faculdade. Isso, com 9 anos de idade, por aí. À primeira vista, pode parecer algo corriqueiro esse tal desejo, mas não é, não era na minha época, pelo menos. Sempre estudei em escola pública e presenciava a distância dos desejos daquelas/es crianças e jovens comparado aos meus. Parecia que “fazer faculdade” era coisa pra rico, e de fato assim o era. Era muito mais difícil uma pessoa que sempre estudou em escola pública conseguir um diploma universitário. E eu sentia aquilo. E eu temia aquilo. Eu lembro que ainda muito pequena eu ficava com medo de nunca conseguir entrar numa faculdade, já que naquele período os incentivos para que isso ocorresse ainda não existiam. Mas aquele meu desejo não veio do nada. Veio do meu ambiente. E eu, que ultimamente ando fazendo um resgate da minha memória, quero falar de todas as pessoas que compuseram o ambiente que vivi.

De onde surgiu esse desejo específico de estudar numa faculdade, ainda tão nova? Esse desejo veio por causa da minha mãe. Minha mãe Rossana, com muito esforço, ganhando muito pouco, me sustentando com a ajuda da minha avó e do marido da minha avó (meu pai de criação, que tanto amo), ainda tinha que estudar e não desistiu, apesar de quase ter sido jubilada da universidade. Ela estudava num dos lugares que eu, até aquele momento, sonhava também em estudar: na USP. Fazia Filosofia, que não é uma ciência, mas questiona tudo, o tempo todo, aguça e desenvolve o pensamento crítico, te faz pensar e fritar o cérebro. Na época, eu não entendia o que significava para uma mulher como ela, que era jovem, mãe solo, sem contato ou auxílio do meu progenitor, que trabalhava fazendo pesquisa na rua para a Folha de São Paulo e também trabalhava com teatro quando a chamavam e, além disso, tinha que separar um tempo para se deslocar até a USP e estudar e MUITO um curso que hoje em dia eu tenho plena consciência do quão difícil é, porque exige muito esforço do pensar. Quais foram as estratégias que ela encontrou? Quais foram as dificuldades que ela passou, que ela me poupou de saber? Ela me conta algumas, agora que sou adulta, mas imagino que tenha sido bem mais difícil do que ela conta. Eu, na minha bolha protegida da infância, não via o que havia por trás de todo aquele esforço, daquela mulher, a Rossana, ter que dividir tudo isso com a sua juventude, com os seus momentos de lazer. O que me lembro era de ver alguns momentos a minha mãe chorando e se dizendo cansada, mas ainda assim ela driblou tudo isso e após 8 anos conseguiu o diploma tão estimado. E era estimado mesmo. Tinha um desejo e uma vontade que era visível na forma que a minha mãe pegava o caderno para estudar, e escrevia em garranchos, tentando acompanhar o ritmo dela do pensar sobre todas essas questões. Eu, aos meus 7, 8, 9 anos, assistia à tudo isso. Eu ficava perturbando a minha mãe, querendo atenção e ela precisando estudar pra prova, me dizia que eu podia ficar no quarto, desde que ficasse quietinha, sem fazer barulho, porque ela precisava se concentrar. Eu tentava fazer silêncio absoluto, mas por ser criança, às vezes fazia barulho e tomava uma bronquinha. Hoje entendo que deve ser difícil estudar filosofia com uma criança pentelhando pra lá e pra cá. Mas ela também tinha um método muito incrível para conseguir estudar e me dar amor ao mesmo tempo: me chamava para estudar com ela. Lia Platão pra mim e perguntava o que eu tinha entendido. Me questionava e juntas pensávamos sobre o que Platão dizia e acho que não há nada mais lindo e mais mágico sobre a minha mãe do que a memória dela me explicando Platão quando eu era uma menininha. Isso me faz compreender o que faz dela tão excelente professora hoje em dia, com seus alunos/as de ensino médio: ela era didática. Talvez ali, naquele momento, estivesse germinando o futuro que a esperava, de dar aulas em escolas públicas sobre filosofia, usando técnicas teatrais e métodos de Paulo Freire. Esse momento pra mim era de brincadeira, era mágico e eu estava aprendendo ainda mais a seguir o caminho do pensar, do desenvolvimento do pensamento crítico e sequer eu tinha consciência disso.

Minha mãe também me levava pra USP com ela às vezes. Como a distância entre lugares era bem maior, já que a mobilidade urbana em São Paulo ainda era bastante ruim, minha mãe pegava os passes de ônibus dela de estudante, eu passava por baixo da catraca, e íamos resolver alguma coisa importante e depois ela já emendava indo pra USP, já que voltar pra casa era fora de cogitação por conta do tempo. Pra mim era um grande passeio e minha mãe ia me apresentando a cidade universitária como se eu fosse uma turista curiosa. Me contava sobre a Praça do Relógio, sentávamos embaixo de uma árvore bem grandona que tinha por lá, para esperar passar o tempo até a aula dela começar, depois caminhávamos, almoçávamos no bandejão e por fim, no começo da noite, ela comprava as clássicas pipocas que uma senhora vendia no prédio da FFLCH, subia as escadas comigo, me deixava sentada num banco e falava “vou só assistir essa aula e depois vamos embora, fique aí quietinha”. Eu tinha muita vontade de entrar, mas naquela época, entendo que provavelmente ela se sentia coibida de levar a sua filha pra dentro da sala de aula, talvez por uma possível represália de algum professor babaca. Eu fico pensando como que ela conseguia se concentrar na aula, sendo que ela precisava toda hora sair da sala para ver se eu estava quietinha onde ela pediu pra eu ficar, e eu de fato estava, já entediada e com sono, querendo ir para a casa, reclamando. E ela pedia “aguenta mais um pouco e já vamos, filha”. Eu aguentava. Se eu soubesse, se eu tivesse noção de como era difícil aquilo para ela, juro que teria reclamado menos.

Quando a minha mãe falava sobre a USP, ela dizia que a USP era uma mãe e que eu estudaria lá, que eu conseguiria tudo o que eu quisesse. Eu amava a USP só pela propaganda que a minha mãe fazia. Tinha um desejo de estudar lá. E medo de não conseguir. Meus amigos e amigas da escola nem pensavam nisso. E hoje, adulta, entendo que naquela época, isso era um direito negado a população mais pobre.

Não estudei na USP, mas consegui bolsa de estudos de Ciências Sociais na PUC. E fui até o fim. E sei que isso foi porque lá atrás, na minha infância, a minha mãe falava sobre a beleza dos livros (algo que incansavelmente qualquer um já me ouviu contar, sobre ela me ensinando a tatear os livros quando eu ainda nem sabia ler), sobre a beleza e o valor do pensar, sobre arte (quantas idas ao Centro Cultural Vergueiro, aos SESC, às apresentações de teatro de minha mãe).

Escrevo isso como registro. Estou caminhando pelos labirintos da minha memória para olhar para mim mesma e entender cada pedacinho que foi responsável pela minha formação. Ao olhar para mim mesma, vejo muitas outras pessoas e acho que essa é a incrível beleza da vida. Não formamos nossas ideias, desejos e anseios do nada e tem coisas lá atrás que ficam na gente pra sempre. Que nos transforma. A Rossana, que antes de ser minha mãe, é uma mulher com desejos próprios e sonhos próprios, atriz, professora de filosofia de escola pública, sensível, questionadora, é uma das minhas primeiras referências. Foi uma das responsáveis pela minha base do pensamento crítico. Somos indivíduos distintos, mas me conecto à ela não só por ter nascido dela, mas por tudo o que ela me possibilitou a ser hoje. Talvez, diante das entraves da vida, eu tenha reconhecido isso tarde. Talvez porque conseguimos tarde equilibrar o nosso jeito, o nosso gênio forte. Mas o valor que eu dou para tudo isso que a Rossana, minha mãe, me deu de presente, é inestimável. Um diamante.

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Tainá Farrielo

Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal - Machado de Assis