meu pai

Tainá Farrielo
6 min readJan 11, 2022

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Uma criança bem pequena está sendo acordada por alguém, enquanto o sol tímido ainda se espreguiça até dar o ar de si lá fora. “Vamos, Tatá, tem que tomar banho para ir pra escola”. Essa criança sou eu. Devo ter uns 3 anos de idade no máximo e consigo ter muitos flashes de lembranças dessa tenra idade. Tatá se recusa a levantar. Quer ficar deitada naquele quentinho, embaixo das cobertas macias, sem coragem de enfrentar o frio matinal da cidade de São Paulo. Sente a cama um pouco úmida. “Ih, fez xixi na cama de novo!”. Sua mãe sol insiste, e Tatá acorda com um peso enorme nos olhos e no corpo. É como se a gravidade pudesse falar com ela, exigindo para que continue na cama. É arrastada para o chuveiro. A água quente cai sobre sua cabecinha enquanto a avó (mãe sol) lhe dá um bom banho, que só traz ainda mais sono, o que desde cedo já demonstra a dificuldade de lidar com as manhãs. Há, nisso, conversas aleatórias de adultos, das quais a memória já não consegue se lembrar. Ainda falam baixo. Há um cheiro de café preto vindo da cozinha. Tatá fica bem agasalhada, incomodada com aquele montão de blusas de mangas compridas. Faz manha. A mãe sol diz: “deixe disso, menina, se não você vai se resfriar”. O pai, risonho, observa com carinho a manhosa da criança que apesar de adorar ir para a escola, está preguiçosa e ranzinza com todo o ritual necessário para ir até lá.

Eu lembro do olhar do meu pai. Era um olhar acolhedor, amável, doce. Ele, então, é o responsável por ficar comigo na frente do prédio, da nossa rua cheia de paralelepípedos na região da Pompéia. Eu digo a “nossa rua”, pois era mesmo nossa. Naqueles minutos que eu aguardava a perua escolar com o meu pai, ele conversava bastante comigo. Adorava me estimular a falar. Eu não lembro o que eu falava, óbvio. Mas lembro ser bem tagarela e amar o interesse que o meu pai tinha em ouvir as criancices que ali eu dizia. Porém, uma conversa em específico eu me lembro: do dia que meu pai me falou sobre as pombas da Raul Pompeia. Eram muitas, e eu perguntava sobre elas. Os retalhos de minha memória não me permitem lembrar como foi exatamente essa conversa, mas me permitem ver perfeitamente a imagem da rua de paralelepípedos cheia de pombas e eu pensando sobre elas, até a hora da despedida de meu pai, quando a kombi escolar chegava e ele me assistia ir embora, dando o seu aceno sagrado de tchau, ritual fundamental para começar o dia antes do trabalho.

Fim de tarde. Leite com chocolate bem quentinho na mamadeira. Tatá deitada no sofá, chegou da escola e se entregou completamente pro conforto daquele ambiente com desenho animado e mimos. Sua mãe quando chegava do trabalho, dava aquele cafuné tão único, que só ela sabia. Sua avó (mãe sol), sempre preocupada se ela estava com fome. Era um apartamento tão pequenininho, de um quarto só! Mas que irradiava amor, transbordava, era quase possível vê-lo transbordando pelas janelas. Mas a melhor parte do dia, ainda estava para chegar. Era quando o seu pai sol entrava pela porta, iluminando todo o ambiente. Tatá gritava, pulava, corria pro colo dele! “Paiiii!”. E seu pai abria um sorriso largo e a levantava no colo, às vezes, com algum docinho de mimo. Noutras, a pegava pela mão e iam no bar de esquina, que tinha um baleiro lindo que girava de uma forma fantástica, repleto de balinhas coloridas enormes. Tatá ficava com os olhos brilhando toda a vez. O dono do bar da esquina, um senhor calvo e gordo, adorava Tatá e seu pai, e sempre dava algumas balinhas para ela, que não disfarçava o contentamento.

Eu e meu pai somos uma dupla inseparável, é verdade. E isso desde a minha tenra infância. Eu adorava passear com ele para ir ao mercado. E havia uma grande responsabilidade: carregar alguns saquinhos do mercado, me sentindo muito útil, arfando o peito, achando que estava fazendo total diferença ao ajudar o meu pai a carregar as compras. Ele percebia como eu me sentia útil e fingia com veemência que eu estava fazendo bastante diferença aliviando o peso de carregar saquinho de pão ou papel higiênico.

Meu pai me fazia surpresas calorosas. Seja com um docinho qualquer, ou algum presente de natal ou aniversário, um brinquedo qualquer mas que para aquela menina, a Tatá, significava o mais alto patamar de presente que alguém poderia ganhar. Quase que uma honraria pelo bom comportamento e por também, desde pequena, reconhecer que as coisas não vinham fácil. Valores que meu pai sol me passou. Outro dia, aliás, o meu pai me deu o presente mais importante de toda a minha vida: o seu sobrenome. Ele virou o meu pai não só no coração, mas de papel passado, documentado. Ter o nome dele na minha certidão de nascimento, como pai afetivo, foi o presente mais lindo que já ganhei em toda a minha vida. E só eu e ele sabemos o significado disso.

Meu pai não me colocou no mundo, não. Mas ele me preparou para o mundo. Me transformou para o mundo. Me moldou. Me deu lições que só ele poderia dar. A começar pelo amor que transborda. O amor do meu pai transbordou por mim desde o dia em que nasci. Desde o dia em que, desesperado, correu para pegar meu enxoval e levar para o Hospital do Ipiranga, enquanto minha mãe e avó (mãe sol), ficaram ansiosas à sua espera, desesperadas para me tirar do hospital em que havia outras crianças com icterícia. O meu pai me pegou no colo. Me ninou antes de dormir. O meu pai, foi um pai que nenhum outro pai poderia ser. Seu amor transbordava. Transbordava quando de madrugada, em meio à pesadelos, ele ia lá deitar comigo até eu conseguir dormir novamente.

O amor do meu pai transborda. Transborda e preenche todo o meu mundo, todo o meu coração. O amor do meu pai é um dos meus apegos em acreditar que o mundo também pode ser lindo. Pois dentro da minha casa, eu tive um pai maravilhoso, que me levava para passear no seu fusca vermelho e que depois me ensinou a dirigir no seu fusca azul, quando eu só tinha 12 anos. Eu tenho mil e uma histórias para contar sobre o meu pai. Eu tenho um milhão de histórias para contar sobre pai e filha, genuínos no ato de amar. Nos relatos de desespero dos pesadelos em que ele ia para longe de mim. Eu morria de medo de perder o meu pai. Morro até hoje, aos 31 anos de idade.

Ele ilumina os meus dias. Quando eu estou muito triste, ele é o sol que aparece na janela (pai sol). Outro dia me disse: “você tem que honrar a camiseta que você usa, lute como uma garota”, me dando uma bronca por desacreditar de mim mesma e do mundo.

O meu pai é um homem doce. Ele ama os animais. Acredita na bondade das pessoas. É justo e gentil. Sorri para todos os seres humanos. Dá bom dia, boa tarde, boa noite. É extremamente perfeccionista e organizado. Também é teimoso, turrão. O meu pai é tão incrível, que parece exagero tudo que falo sobre ele, quando, quem o conhece, sabe o quão legítimo isso tudo que digo é. O meu pai acha absurdo ir ao restaurante e depois de comer não retirar a bandeja da mesa. E fica indignado com quem deixa lá para que outra pessoa pegue (e eu também. Adivinha quem puxei). O meu pai é tão gentil, que todas as pessoas querem-no por perto. As crianças adoram o meu pai (eu bem sei, fui uma criança com o privilégio de ter crescido ao lado dele e era incrível como ele me deixava feliz, fui a criança mais feliz do mundo); os animais também adoram o meu pai. É quase como se alguém tivesse tirado o meu pai de um livro, um personagem maravilhoso e nobre e colocado dentro da minha vida. Ele não me colocou no mundo, mas a vida colocou ele no meu mundo. E o meu mundo transbordou e transborda amor.

Tatá não quer aprender matemática hoje. Mas precisa fazer a lição de casa. Seu pai quer porque quer que ela aprenda matemática. Oras! Como assim não gosta de matemática? E fica bravo com o desinteresse da menina, que prefere ver os livros infantis e desdenha aquele saber que é tão importante para o Seu Chico. Ao mesmo tempo, ele fica impressionado com o interesse da menina pela ansiedade em saber ler e escrever. Ela pede “pai, escreve pr’eu copiar?” E aí ele escrevia alguma frase e ela na linha debaixo, com canetinha, copiava letrinha por letrinha, mesmo sem saber ler o que estava escrito. Claro, ela pedia para saber o que era que ele tinha colocado ali. Uma das frases eu ainda me lembro: “o rato roeu a roupa do rei de Roma”.

O meu pai, pai sol, permanece com o mesmo olhar de orgulho e afeto. Com o mesmo acolhimento e preocupação de quando eu era uma meninota. O sorriso ainda é largo, principalmente quando está orgulhoso de mim. Hoje, ele já não consegue disfarçar os olhos marejados, ao lembrar da doçura de nossa vida, preenchida com o nosso amor de pai e filha, que transborda.

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Tainá Farrielo

Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal - Machado de Assis